O estigma e preconceito sociais podem causar fortes impactos na vida de um portador de tuberculose e em sua família, a ponto de acarretar o isolamento social dele e grandes dificuldades no controle da doença. Algo tão nocivo capaz de fazer com que enfermos jamais queiram tratamento ou abandone-o por se sentirem discriminados e ficarem envergonhados. O problema atravessa séculos e têm peculiaridades relacionadas a determinadas épocas, que passam pelo mito, pela exaltação da doença por intelectuais na época do Romantismo, pelo tabu, refinamento das vítimas da doença por meio de lições de moral, pelas experiências naturalistas, higienismo e desmistificação. Um verdadeiro desafio a ser vencido na área de saúde pública.
A historiadora e pesquisadora aposentada da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e doutora em Saúde Coletiva (IMS/Uerj) Ângela Pôrto, recordou que o horror à tuberculose se justificava até o início do século passado por sua incurabilidade, que fazia dela um tabu e tinha o sintoma extremo da estigmatização do doente e consequente isolamento. Segundo ela, o medo da morte provocava o pavor à tuberculose, que ainda hoje persiste entre as camadas mais desinformadas da população, apesar de ser uma doença tratável e curável. “A persistência da estigmatização da tuberculose e do tuberculoso, sem dúvida, constitui sério entrave no controle da doença”, afirmou.
Ângela é autora da tese “A vida inteira que podia ter sido e que não foi: trajetória de um poeta tísico” (1999/2000) sobre a doença na primeira metade do século 20, que traçou a história do poeta Manuel Bandeira (1886-1968) desde que ele descobriu ser tuberculoso no final de sua adolescência. O trabalho de doutorado em pós-graduação em Saúde Coletiva na Uerj/Instituto de Medicina Social, de 1997, mostra a experiência de Bandeira com a doença. Ele usou a poesia como recurso na reelaboração de sua própria identidade.
No século 18 e início do século 20 a tuberculose era considerada doença de caráter interessante, concepção difundida mais entre os intelectuais e artistas e típica da sensibilidade romântica que marcou a época. Ângela recordou que o tuberculoso trazia uma aura de excepcionalidade, associada a conceitos essenciais do espírito romântico, como nostalgia, a imaginação criativa e outros que exprimissem estados de alma inefáveis ou que valorizassem tudo que remetesse a uma experiência incomum.
Isso, segundo ela, mudou quando a sensibilidade romântica começou a dar sinais de esgotamento. A partir da segunda metade do século 19, havia uma tendência da tuberculose aparecer como promotora do refinamento de suas vítimas, de forma que a condenação trazida pela doença viabilizaria a recuperação moral do doente. Isso está evidente nos livros “A dama das Camélias”, de Alexandre Dumas, de 1848, e “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, de 1924.
Nessa época se manifestavam as características burguesas de preceitos biológicos, médicos ou eugênicos que expressavam a expansão infinita da força, do vigor, da saúde e da vida. A burguesia, de acordo com Ângela, valorizava seu corpo à medida que dependia dele seu projeto de crescimento e de hegemonia. Tudo que pudesse representar ameaça à hereditariedade, continuou a historiadora, deveria ser objeto de banimento ou severo tratamento e, por isso, o tuberculoso transformou-se num perigo que deveria ser ‘eliminado’ para o bem da coletividade.
Segundo Ângela, viveu-se, então, uma experiência naturalista e o processo de industrialização da nova era contribuiu para considerar a doença como deterioração social, por atingir as camadas mais pobres da população, ou seja, sua força produtiva: as classes trabalhadoras. “As medidas higienistas, que têm por consequência o isolamento do doente, ganharam terreno”, comentou.
Conscientização
Muitas vezes o estigma e preconceito social da tuberculose deixam pacientes em situações bastante embaraçosas até mesmo quando apenas suspeitam estar com a doença. A psicóloga clínica Danielle M. Nogueira, que fez o curso de especialização em psicologia hospitalar do Hospital Clementino Fraga Filho – UFRJ, nota na nossa cultura, de forma geral, uma separação entre saúde e doença que tende a afastar doentes crônicos. Danielle recordou, por exemplo, o caso de um homem que só porque tinha tosse muito forte pediu laudo do médico para mostrar a pessoas próximas e vizinhos que ele não estava com doença contagiosa. A fim de ‘quebrar’ estigmas, ela acha necessária a conscientização por meio do acompanhamento psicológico para o paciente levar o tratamento até o final, além de rede de apoio com assistentes sociais, atenção familiar e de amigos e a parceria do próprio médico.
Para a psicóloga clínica Giulia Camponez, que faz o mesmo curso de especialização no Clementina Fraga Filho, essa rede de apoio deveria existir desde a atuação primária até a terciária. Conforme ela, que trabalhou junto a paciente portador de tuberculose em situação de vulnerabilidade social no Centro de Referência Integrada de Atenção ao Adolescente (Cria) da UFF, pelo fato da doença ter características erradas divulgadas no imaginário social, uma pessoa pode imaginar que foi contagiada e apresentar sofrimento físico, fadiga, problema nas relações, ausência no trabalho e manifestações de angústia, ansiedade e depressão. Já quem está contagiado com tuberculose, prosseguiu, precisa de mais conhecimento sobre a doença, desde onde se tratar, para que haja mais adesão ao tratamento. “Doenças como a tuberculose estão para além de uma questão biológica. São também questão social”, disse.